Modelo De Evolucao Da Populacao No Brasil Colonial

Modelo de Evolução da População no Brasil Colonial

1. Introdução

Este trabalho visa a construção de um modelo capaz de dar conta da evolução demográfica do Brasil até 1872 (quando foi realizado o primeiro censo demográfico). O título reflete o fato de que a dinâmica demográfica do período 1822-72 permanece semelhante à do Brasil colonial, com duas modificações importantes: primeiro (em ordem cronológica), o início da imigração estrangeira, particularmente a alemã, ainda na segunda década do século XIX; segundo (mas mais importante em termos quantitativos), o fim do tráfico negreiro para o Brasil em 1850. Três tipos principais de dados históricos são levados aqui em consideração: as estimativas demográficas existentes para a população brasileira, os dados referentes à entrada de colonos portugueses e de escravos africanos no Brasil, e o conhecimento histórico disponível a respeito das formas através do qual a população colonial brasileira se reproduzia. A esses acrescemos, no que se refere ao período 1822-72, os dados referentes à imigração estrangeira. O que o modelo a ser desenvolvido se propõe a fazer é integrar esses dados de forma coerente, de maneira a reconstituir, com a exatidão possível, a história demográfica do período colonial. Essa tarefa somente é possível atentando para o conhecimento biológico a respeito da transmissão de caracteres hereditários.

Na seção 2, discutimos os dados disponíveis referentes à contagem da população brasileira, desde as primeiras tentativas por parte de cronistas coloniais, até o Censo de 1872. A seção 3 discute os dados referentes à entrada de colonos portugueses e escravos africanos. Na seção 4, discutimos a evolução histórica da população brasileira até 1872, com ênfase na crise e declínio da população indígena e na dinâmica da população de origem africana, sob a égide do regime de escravidão. Na seção 5, investiga-se a evolução posterior a 1872, no sentido de fundamentar a validade do conhecimento acumulado a respeito da população no final do período que nos interessa, isto é, imediatamente antes do início da imigração em massa, e imediatamente após a Guerra do Paraguai. Na seção 6, explicitamos os pressupostos biológicos a respeito da transmissão de caracteres hereditários, indispensáveis para o entendimento do processo da formação "racial" da população brasileira. Na seção 7, explicitamos a interação entre fatores históricos e genéticos na formação da população brasileira, a partir dos conceitos já consagrados de "miscigenação" e "assortative mating", e do que denominamos "decantação".

2. As estimativas de população

As estimativas demográficas para o Brasil colonial são diversas, e nem sempre compatíveis umas com as outras. Izabel Aparecida de Almeida1 nos dá uma longa lista destas estimativas, sem infelizmente fornecer as respectivas fontes. Na medida do possível, as fontes foram estabelecidas com recurso a outros autores:

Ano População Fonte População Fonte População Fonte População Fonte
1550 15.000 Contreiras Rodrigues2
1570 20.760 diversos autores3
1576 17.100 Rodrigues
1583 57.000 Pandiá Calógeras4
1585 29.400 Gabriel Soares de Souza5
1600 100.000 Rodrigues
1660 184.000 Rodrigues
1690 242.000 Rodrigues
1700 300.000 Celso Furtado6
1766 1.500.000 7
1770 2.502.000 Giorgio Mortara8
1775 2.666.000 Mortara
1776 1.788.480 9 1.900.000 Souza e Silva10 2.700.000 Mortara
1780 2.523.000 11 2.841.000 Mortara
1785 3.026.000 Mortara
1790 3.225.000 Mortara
1795 3.435.000 Mortara
1798 2.888.078 12 3.569.000 Mortara 3.800.000 13 4.000.000 14
1800 3.250.000 Furtado 3.660.000 Mortara
1805 3.900.000 Mortara
1808 2.424.463 Anônimo15 4.000.000 Souza e Silva 4.051.000 Mortara
1810 3.617.900 16 4.000.000 Humboldt 4.155.000 Mortara
1815 2.860.525 Velloso de Oliveira17 4.427.000 Mortara
1817 3.300.000 Souza e Silva 4.541.000 Mortara
1819 4.396.132 Velloso de Oliveira 4.657.000 Mortara
1820 4.717.000 Mortara
1823 3.960.866 Anônimo 4.899.000 Mortara
1825 5.000.000 Souza e Silva 5.025.000 Mortara
1827 3.758.000 Souza e Silva 5.154.000 Mortara
1830 5.340.000 Souza e Silva 5.354.000 Mortara
1834 3.800.000 Souza e Silva 5.690.000 Mortara
1835 5.777.000 Mortara
1840 6.233.000 Mortara
1845 6.725.000 Mortara
1850 8.000.000 Baptista de Oliveira 7.256.000 Mortara
1854 7.677.800 Souza e Silva 7.711.000 Mortara
1855 7.829.000 Mortara
1860 8.448.000 Mortara
1865 9.114.000 Mortara
1867 11.780.000 Souza e Silva 9.396.000 Mortara
1868 11.030.000 Souza e Silva 9.539.000 Mortara
1869 10.415.000 Souza Brasil 9.686.000 Mortara
1870 9.834.000 Mortara
1872 9.930.478 Censo 1872

Mostramos aqui estimativas avançando até 1872, data do primeiro censo demográfico, para poder estabelecer de forma clara um conjunto consistente de informações, mostradas em azul no gráfico abaixo. Evidentemente, as estimativas mais consistentes, aqui, são as de Giorgio Mortara; infelizmente, elas começam em 1770, deixando a descoberto o amplo período que vai do início da colonização até a crise da economia aurífera.

Para o período anterior, além de não podermos contar com Mortara, as estimativas são poucas. A estimativa de 17.100 habitantes, para o ano de 1576, de Contreiras Rodrigues, parece claramente incompatível com a estimativa do mesmo autor, de 15.000 habitantes para 1550; é provável que se refira apenas à população branca, e, mesmo assim, parece difícil acreditar que esta tenha sido acrescentada em apenas 2.100 pessoas entre 1550 e 1576. Da mesma forma, as estimativas de Contreiras Rodrigues para 1660 e 1690, e a de Furtado para 1700 parecem deprimidas, embora seja necessário levar em consideração que o crescimento no período 1700-1770 deve ter sido extraordinariamente intenso, como veremos a seguir, e, portanto, uma inflexão ascendente da curva por volta de 1700-1710 não seria de estranhar.

graficopopulacaocolonial.bmp
Estimativas de população do Brasil colonial. Destacadas em azul as que constituem um conjunto coerente.

3. A entrada de colonos portugueses e escravos africanos

Da mesma forma que as estimativas de população, os dados referentes à entrada de colonos portugueses no Brasil são esparsos e assistemáticos. A tabela abaixo mostra a entrada de colonizadores, de acordo com Renato Pinto Venâncio18:

1500-1640 100.000
1641-1700 nd
1701-1760 600.000
1761-1807 nd
1808-1817 24.000
1818-1826 nd

Como se vê, faltam dados para pelo menos dois períodos importantes, 1641-1700 e 1761-1807.

Talvez paradoxalmente, os registros de entrada de escravos são melhor preservados, provavelmente por que, sendo os escravos tratados como mercadoria, os registros do tráfico assumiram a forma de escrituração contábil. A parte uma série de estimativas de diversos autores, entre os quais Maurício Goulart apresenta os dados mais sólidos, um banco de dados bastante amplo das viagens de transporte de africanos escravizados para as Américas em geral, com dados detalhados para o Brasil, pode ser encontrado em The Trans-Atlantic Slave Trade Data Base. A partir desses dados, foram extrapoladas as seguintes estimativas:

ano total média anual
1551-1575 2.461 98
1576-1600 26.814 1.073
1601-1625 156.468 6.259
1626-1650 163.938 6.558
1651-1675 204.575 8.183
1676-1700 259.475 10.379
1701-1725 423.161 16.926
1726-1750 468.690 18.748
1751-1775 476.010 19.040
1776-1800 621.156 24.846
1801-1825 1.012.762 40.510
1826-1850 1.041.964 41.679
1851-1866 6.899 431
Total 4.864.374 15.394

4. O conhecimento histórico a respeito do crescimento e reprodução da população colonial

Além do que fica implícito nos dados acima, sabemos também que a maioria dos colonizadores portugueses era do sexo masculino, o que resultou em extensa miscigenação tanto com mulheres da população original, quanto com escravas africanas. Também se sabe que essa miscigenação não era indiscriminada, mas obedecia a preferências muito claras, sempre dentro de um quadro de dominação patriarcal, masculina, muito intensa (embora provavelmente abrandando muito ligeiramente no final do período) e de hierarquização racial, em que o branco se situava no topo e o negro na base, com os indígenas e mestiços de variados tipos ocupando posições intermediárias. Essa hierarquia não era rígida nem precisa; antes baseou-se sempre em considerações impressionistas, na aparência física mais do que na ancestralidade documentada (talvez aqui resida um contraste importante com a cultura norte-americana). A mecânica do processo parece ter sido a seguinte: primeiro, os recém chegados do reino, em sua maioria homens, detiveram, no início, a iniciativa no que toca à formação de relações conjugais e extra-conjugais, tanto na condição de futuros maridos quanto na de futuros sogros. A preferência matrimonial dos recém-chegados sempre recaía sobre mulheres o mais brancas possível; havendo mulheres do reino, eram as preferidas; não as havendo, preferiam-se mulheres de ascendência portuguesa recente, ascendência garantida pela figura do futuro sogro. As filhas de reinol, portanto, apareciam em segundo lugar na hierarquia de preferências dos recém-chegados - os quais, por sua vez, constituíam os genros preferidos. No momento inicial da colonização, em que não havia, ou havia pouquíssimas, mulheres brancas, e em todos os momentos em que a chegada de portugueses ao Brasil se acelerou, havia contudo um excedente de homens reinóis, que tinha de se contentar com mulheres mais distantes da preferência. Eles assim tomavam mulheres mestiças, ou mesmo indígenas, deslocando os homens mestiços e indígenas, possivelmente num processo em "cascata". Paralelamente, durante todo o período, abundaram as relações extra-conjugais, em que, embora uma preferência pelas mulheres brancas não possa ser descartada, era certamente menos premente do que no caso das relações conjugais.

O mito típico da ligação matrimonial português-índia (Caramuru, João Ramalho), portanto, constitui mais a exceção do que a regra, exceto talvez nos primeiros vinte ou trinta anos de colonização ou nos momentos de expansão súbita do número e do poder dos portugueses no Brasil (início do ciclo da mineração, ocupação do sertão nordestino, colonização do Rio Grande do Sul). Na grande maioria das vezes, a miscigenação se dava entre homens brancos e mulheres já mestiças - tanto mais que a população indígena entrou em colapso demográfico já pelo final do século XVI, e que a miscigenação entre homens brancos e mulheres negras jamais se beneficiou do tipo de legitimidade ou semi-legitimidade que caracterizou a ligação com índias nos momentos iniciais de colonização de uma região. De fato, inexiste qualquer correspondente afro-lusitano das narrativas de Caramuru ou João Ramalho: as ligações entre portugueses e escravas africanas jamais foram romantizadas e idealizadas, embora certamente não fossem pouco numerosas.

A população indígena e seu colapso

As estimativas da população indígena em 1500, no território que constitui atualmente o Brasil, variam bastante, entre dois milhões e meio e seis milhões de pessoas. De qualquer forma, tratava-se de uma população muito mais dispersa, com uma densidade muito mais baixa, quando comparada à de outros continentes, não apenas a Europa e a Ásia, como também a África. Mesmo na América, a região andina e o atual México tinham populações muito mais densas. Por outro lado, essa população não se encontrava toda concentrada nos pontos em que os colonizadores principiaram a se estabelecer. Ainda assim, era uma população consideravelmente maior do que a dos primeiros núcleos coloniais.

Os primeiros contatos entre colonizadores e ameríndios resultaram no estabelecimento de uma economia de escambo, em que os europeus forneciam, em troca do pau-brasil, além das proverbiais "quinquilharias" em que se compraz a tradição brasileira de auto-depreciação, ferramentas que revolucionaram a vida cotidiana dos indígenas: facas, machados, arados, etc. Paralelamente a essa rede comercial primitiva, ambos os lados procuraram obter vantagens políticas da aproximação, basicamente contra os seus inimigos tradicionais: os portugueses contra os franceses, os indígenas de cada tribo contra as outras - notadamente Tupiniquins contra Tupinambás.

Ora, os indígenas já praticavam um sistema de aliança política pelo matrimônio, em geral entregando mulheres da tribo como esposas em troca de aliança ou proteção política. Correlatamente, os indígenas, embora tivessem como norma a monogamia, permitiam aos personagens importantes das tribos terem várias esposas, o que lhes permitia acumular alianças. Os poucos portugueses desembarcados no Brasil antes de 1530 - João Ramalho, Caramuru, o bacharel da Cananéia - puderam tomar partido dessa norma cultural, tomando várias esposas, e depois, em conseqüência, dispondo de várias filhas para estabelecerem redes de alianças. Neste sentido, o mito de Caramuru provavelmente reflete o impacto da tecnologia européia sobre as populações indígenas. Desta forma, mesmo os primeiros colonizadores em São Vicente ou Salvador provavelmente já encontraram mulheres mestiças, e não apenas índias, ao se estabelecerem no Brasil.

Por outro lado, a economia de escambo rapidamente se desagregou, à medida em que os portugueses buscavam primeiro ampliar a coleta de pau-brasil, e segundo estabelecer as bases de uma economia agrícola, seja de subsistência, seja de exportação, e nesse sentido buscavam transformar os seus aliados em serviçais. A população indígena, a esta altura, já se havia tornado dependente dos presentes dos portugueses, o que permitia a estes aumentar paulatinamente a pressão; os eventuais atos de rebeldia serviam então de pretexto para, rompendo com as aparências, escravizar diretamente os indígenas.

Entretanto, essa forma de contato já implicava a desorganização das sociedades indígenas. Em contato com uma tecnologia muito superior àquela a que estavam acostumados, os indígenas tenderiam necessariamente a se "aculturar", ou seja, a abrir mão de suas tradições culturais, adotando as dos portugueses, mesmo que estes não as impusessem. Historicamente, contudo, a imposição foi a regra, sobretudo em função do caráter extremamente autoritário e intolerante da religião católica praticada pelos portugueses no século XVI.

Desta forma, uma parcela considerável da população indígena se tornou rapidamente "aculturada"; seus descendentes, miscigenados em maior ou menor grau aos portugueses, ainda hoje se encontram mesclados à população brasileira. Entretanto, a aculturação não foi a única causa da crise demográfica da população indígena. Um segundo elemento se encontra na escravização, completa ou parcial, a que os portugueses passaram a submetê-la, assim que as relações de força o permitiram. O uso intensivo da mão-de-obra, a desorganização dos costumes matrimoniais, o - para sermos exatos - quase monopólio sobre as mulheres indígenas que os portugueses conseguiram estabelecer, a utilização constante dos índios jovens como "bucha de canhão" nas lutas empreendidas pelos portugueses contra os franceses, contra os holandeses, contra escravos amotinados, contra outras tribos indígenas, a prática de impedir ou dificultar a reprodução dos cativos, tudo isso teve conseqüências drásticas para a viabilidade demográfica dos índios brasileiros.

À aculturação, forçada ou não, à escravidão e à guerra, é ainda necessário somar as epidemias. Ao contrário da África, em que a população local estava muito mais habituada que os europeus às doenças tropicais, a América pré-colombiana era quase um paraíso epidemiológico, isolada por dois oceanos da evolução muito mais intensa dos agentes patogênicos no velho continente. Esse isolamento sanitário foi a causa, contudo, da fragilidade dos sistemas imunológicos da população ameríndia quando da chegada dos portugueses. As epidemias, sobretudo de varíola, trazidas pelos europeus e pelos africanos, em conseqüência, se abateram pesadamente sobre as populações aborígenes, causando extensa devastação. E esse fenômeno foi ainda potencializado pela concentração populacional causada pela chegada dos portugueses. Ao aglomerar a população indígena, involuntariamente, através do poder de atração de suas mercadorias e alianças, ou deliberadamente, ao reuni-los em missões e aldeamentos, os recém-chegados contribuíram para expor a população local ainda mais às doenças dos brancos.

É difícil quantificar o papel desempenhado por esses fatores na crise demográfica brasilíndia. Sabemos que as epidemias causaram incontáveis mortes; sabemos que as guerras dos portugueses cobraram elevadíssimo preço em vidas indígenas; sabemos que a escravidão foi devastadora para os índios, tanto ou mais do que para os negros; e sabemos que enormes contingentes de índios, principalmente mulheres, simplesmente abandonaram suas culturas e aderiram - em posição quase sempre subalterna, com as exceções em que se compraz o mito brasileiro da "democracia racial" - àquilo que se tornaria, muito depois, a nação brasileira, mas que naquele momento seria melhor descrito como "empresa colonial". O peso relativo de cada um desses fenômenos permanece desconhecido. A verdade, contudo, é que, muito cedo, em meados do século XVII, a população ameríndia estava em sua maior parte exterminada ou aculturada, e os seus remanescentes - talvez uma terça parte da população original - tomavam o caminho dos sertões e das matas ainda não desbravadas pelos portugueses, dispostos a não renovar um contato que se havia demonstrado profundamente destrutivo. Nessa retirada, levavam consigo os patógenos trazidos pelos portugueses, aos quais haviam agora se adaptado, para o interior profundo, possivelmente causando novas e não registradas mortandades. Os contatos seriam eventualmente retomados, em menor escala, quando a empresa colonial se expandiu, como na ocupação do sertão nordestino ou da região sul; mas, com a exceção da região amazônica, no início do século XIX já não se podia mais falar em miscigenação entre portugueses e indígenas no território brasileiro.

A escravidão e a população negra

A partir do momento em que os portugueses decidem ocupar efetivamente o território do que hoje é o Brasil, a fim de evitar que outras potências - particularmente Holanda e França - o fizessem, a escravidão africana foi colocada na pauta. A população portuguesa era escassa, insuficiente para uma colonização efetiva nos moldes da que os ingleses efetivaram na América do Norte, e os indígenas brasileiros refratários ao tipo de trabalho que os portugueses pretendiam implementar no Brasil. Assim, cedo se estabelece o tráfico de escravos da África para o Brasil, o qual viria a se tornar o mais importante mercado de escravos no Novo Mundo.

Os números mostrados acima não deixam dúvidas, em que pese a sua necessária imprecisão, a respeito da esmagadora superioridade numérica dos negros africanos escravizados em comparação com os colonizadores portugueses. Seriam quase 5 milhões de escravos importados, em comparação com pouco mais de 700.000 colonizadores portugueses - uma proporção, portanto, de cerca de sete para um.

Esta proporção, ou desproporção, contudo, não se reflete na composição atual da população brasileira, por que tanto a sobrevivência quanto a reprodução da população escravizada foram brutalmente afetadas pela escravidão. Diversos relatos situam a sobrevivência média do escravo africano no Brasil em torno de sete anos após a chegada. Embora tais relatos não sejam necessariamente confiáveis, e embora alguns fatores devam ser levados em conta para relativizá-los (o preço dos escravos tendeu a subir com o tempo, desencorajando uma atitude demasiado leviana para com a sua sobrevivência; as ocupações dos escravos eram diferenciadas, sendo os escravos domésticos e os que possuíam habilidades artesanais, até pela própria natureza das atividades, menos desgastados pelo trabalho; o tratamento dos escravos era diferenciado por sexo, etc.), é contudo bastante claro que, para a grande maioria dos escravos, o trabalho extenuante, os castigos corporais frequentes, a depressão causada pela escravização, tinham como consequência uma significativa abreviação da vida. Mais que isso, contudo, pesou um outro fator: a reprodução entre escravos era sistematicamente desestimulada, pois, do ponto de vista dos escravagistas, era anti-econômica: a criação do escravo, até a idade de trabalhar, era mais dispendiosa do que a compra do escravo adulto, e a maternidade diminuía a capacidade de trabalho da escrava. Desta forma, os plantéis masculinos eram mantidos cuidadosamente separados dos femininos.

Por outro lado, o mesmo raciocínio que desenvolvemos em relação aos índios foi também válido para os negros: os senhores brancos estabeleceram na prática o seu monopólio em relação às mulheres negras, às quais podiam sujeitar à vontade, enquanto os homens negros foram sistematicamente excluídos da reprodução, ao menos enquanto não fossem manumitidos.

Assim, a população negra no Brasil escapou ao colapso que afetou as populações indígenas apenas por que foi continuamente reintroduzida até 1850, quando o tráfico foi finalmente proibido. Em 1888, a escravidão foi finalmente abolida, mas, ainda assim, os índices de fertilidade das mulheres negras continuaram sistematicamente mais baixos que os das brancas até meados do século XX. É só a partir daí, com a gradual extensão das melhorias de condição de vida proporcionadas pela medicina moderna à maioria da população (e com o início mais precoce da redução das taxas de natalidade entre as brancas) que essa situação se inverte, e a população negra (e "parda") passa a crescer num ritmo maior que a população branca.

5. A população brasileira após o período colonial e sua evolução, do censo de 1872 até o de 2000

No primeiro censo demográfico realizado no Brasil, em 1872, a população brasileira atingia 9.930.478 habitantes, dos quais 3.787.289 brancos, 1.954.452 pretos, 3.380.172 pardos e 386.955 "caboclos". "Pardos", na época, era o termo utilizado sobretudo para mulatos; de fato, enquanto o censo classificava a população livre em quatro categorias, a população escrava se dividia apenas em pretos e pardos. "Caboclos" é o termo tradicional para mestiços de índio e branco; contudo, incluía, neste censo, a população indígena aculturada19. A população indígena não aculturada não foi contada, mas sabemos que era bastante reduzida. No censo de 2000, 128 anos depois, a população total havia crescido para 169.872.856, dos quais 91.298.042 brancos, 10.554.336 pretos, 65.318.092 pardos, 761.583 "amarelos" e 734.127 indígenas.

Algumas observações são necessárias para entendermos melhor o que se passa entre esses dois censos. Primeiro, verificamos um crescimento mais do que proporcional da população branca, que passa de 38,14% do total em 1872 para 53,75% em 2000. Dois motivos explicam essa desproporção: a já citada diferença entre as taxas de fecundidade entre as mulheres brancas e não-brancas, e a imigração em massa da Europa para o Brasil durante a parte mais antiga do período. De fato, se observarmos a composição "racial" da população nos censos intermediários, veremos que o crescimento da população branca é mais do que proporcional até 1940, quando atinge 63,47% do total da população. De 1940 em diante, a imigração cai muito, as taxas de fecundidade se equilibram, e o crescimento da população branca passa a ser ligeiramente menos do que proporcional até 1960, quando os brancos constituíam 61,03% da população. Entre 1960 e 1980, o crescimento da população branca é fortemente menos do que proporcional, refletindo a queda da fecundidade das mulheres brancas, já então na segunda fase da transição demográfica, e a proporção de brancos na população total cai para 54,23%. Daí em diante, o crescimento da população branca parece acompanhar de perto o crescimento da população total, oscilando entre 51,67% em 1991 e 53,74% em 2000.

Segundo, o crescimento da população parda é proporcional no período como um todo, aumentando de 38,28% em 1872 para 38,45% em 2000. Entretanto, é preciso levar em consideração aqui a categoria "caboclo", que figurava nos censos de 1872 e 1890, mas que foi depois suprimida. É muito provável que essa população tenha se reclassificado como "parda" no correr dos anos; se foi isso que aconteceu, então deveríamos somar as populações parda e cabocla de 1872 para efeitos de comparação, e o que se verificaria seria uma queda da proporção parda da população, de 42,18% em 1872 para 38,45% em 2000. Por outro lado, o censo de 1940 apresenta um proporção extraordinariamente baixa de pardos na população: 21,21%, muito abaixo do último censo anterior a pesquisar a variável "raça", o de 1890 (32,36% de "mestiços" e 41,40% de mestiços e caboclos somados), e também do censo imediatamente seguinte, em 1950 (26,54% de pardos). Aqui acrescenta-se outro problema, que consiste na mudança da categoria "pardo" para a categoria "mestiço" no censo de 1890. Coincidentemente, no censo de 1890 observa-se um aumento extraordinário na proporção de caboclos, de 3,90% em 1972 para 9,04% - crescimento esse que de forma alguma pode ser atribuído a um aumento real da população cabocla: ou o censo de 1890 errou completamente nas contas (e, sem dúvida, foi um censo problemático, conduzido apressadamente e sem a adequada preparação), ou, por algum motivo, as pessoas que se classificaram como "pardas" em 1872 não aceitaram o termo "mestiço", migrando para a categoria "caboclo".

Terceiro, verifica-se o aparecimento, nas estatísticas do censo, de duas novas categorias: "amarelo" e "índigena". Os amarelos aparecem logo no primeiro censo a pesquisar a variável "raça" depois do início da imigração japonesa para o Brasil, em 1940, quando constituem 0,59% da população, crescendo para 0,69% em 1960 e depois caindo para 0,45% em 2000, apresentando, portanto, uma dinâmica demográfica muito semelhante à dos brancos, muito provavelmente por que são também muito próximos destes do ponto de vista sociológico. A população indígena só começa a ser contada em separado em 1991; mas, ao contrário dos amarelos, evidentemente já existia antes disso, sendo classificada entre os pardos. Entre 1991 e 2000, além disso, a população indígena cresceu de forma extremamente desproporcional, impossível de ser explicada apenas pelo crescimento natural dessa população: um considerável movimento de reclassificação deve ter ocorrido durante essa quase-década.

Em quarto lugar, a população preta caiu fortemente durante o período, de 19,68% em 1872 para 6,21% em 2000, com duas quedas particularmente intensas em 1890 (de 19,68% para 14,63%) e 1950 (de 14,64% para 10,96%). Essas quedas são particularmente curiosas por que antecedem e sucedem, respectivamente, uma quase estabilidade entre os censos de 1890 e 1940, o que nos leva a questionar a exatidão dos dados deste último censo (em que pese ter sido, para a época, excepcionalmente bem planejado e executado).

A partir destes dados, e de algumas considerações sobre a metodologia e a confiabilidade dos diversos censos, particularmente até 1950, tentaremos agora proceder a uma análise crítica das mudanças ocorridas durante o período 1872-2000, para que possamos avaliar, da forma mais precisa possível, em que medida o censo de 1872 refletiu de fato a composição "racial" da população da época, e, portanto, pode ser tomado como um retrato fiel da população resultante da colonização portuguesa e das modificações ocorridas durante os cinquenta anos da independência até então.

Dentre os censos que nos interessam (o que exclui os de 1900, 1920, e 1970, que não pesquisaram a variável "raça"), o de 1890 e foi problemático, tendo resultado numa subestimativa da população. Tanto o censo precedente, em 1872, quanto o que o sucedeu, do ponto de vista da contagem "racial" da população, em 1940, foram muito mais bem preparados e executados. E, na medida em que os dados destes dois censos parecem contradizer os do de 1890, é natural que nos inclinemos a admitir que o problema está neste último. Entretanto, os censos de 1872 e 1940 destoam de todos os demais num aspecto metodológico importante no que diz respeito à pesquisa da variável raça.

Comecemos pelo censo de 1872. Inaugurando uma prática que seria depois repetida por quase todos os censos, os entrevistados eram interrogados a respeito da sua "raça" ou "cor da pele". Mas era-lhes oferecido um número restrito de alternativas; trata-se, portanto, de uma "pergunta fechada", ainda que o critério seja a auto-classificação. No censo de 1872, essas alternativas eram "branca", "preta", "parda" e "cabocla"; as três primeiras seriam repetidamente usadas em todos os censos posteriores (com a única exceção de 1890, em que a alternativa "parda" foi substituída por "mestiça"). A alternativa "cabocla", contudo, foi repetida apenas em 1890, e nunca mais. Esta, contudo, não é, em nossa opinião, a diferença mais importante entre 1872 e 1890. O censo de 1872 foi conduzido ainda antes da abolição da escravidão; entre outras consequências, isso levou a que uma parcela da população (os escravos) fosse pesquisada de forma muito diferente: ao contrário dos livres, para os escravos não se utilizou a auto-classificação. Eles foram classificados pelos seus proprietários.

Relacionado a esse fato ou não, os resultados do censo de 1872 nos mostram uma população livre dividida entre as quatro categorias; mas a população escrava se dividia apenas entre pretos e pardos. Não haveria, portanto, escravos brancos ou caboclos. Seria isso o resultado de uma deliberada reclassificação dos escravos eventualmente brancos ou caboclos por parte do censo? Ou simplesmente não teria sido oferecida outra opção aos donos de escravo? Não temos essa informação. O que temos é uma massa de um milhão e meio de pessoas que eram escravas em 1872, das quais mais de um milhão de pretas e mais de 400 mil pardas, libertada, respondendo por si mesma ao censo de 1890. Estaria aí uma das causas do súbito aumento no número de caboclos em 1890? Se supusermos que a população cabocla aumentou proporcionalmente no período entre os dois censos, ela deveria estar em cerca de 558 mil pessoas em 1890. Como foram contados cerca de 1.296.000, isso significa um acréscimo não explicado de cerca de 737 mil pessoas, as quais (ou alguém por elas) devem ter respondido alguma outra coisa em 1872. Teriam os 477 mil ex-escravos pardos de 1872, e os seus descendentes então ainda não nascidos, se reclassificado como caboclos em 1890?

Um problema para essa hipótese é a diminuição percentual significativa da porção preta da população, que cai de 19,68% para 14,63%, o que deveria, em princípio, refletir uma reidentificação dos pretos de 1872 como pardos em 1890.

Por outro lado, o censo de 1890 substituiu a alternativa "parda" pela alternativa "mestiço", e é possível que isto tenha tido impacto sobre a auto-classificação das pessoas. Entretanto, não temos nenhuma indicação de como isto teria ocorrido, nem por que motivo se daria essa influência.

Discutamos agora o censo de 1940. Este foi um censo de uma envergadura e de uma precisão inéditas no país, superando em muito os esforços anteriores, inclusive o de 1872, mas sobretudo os três primeiros censos republicanos. Entretanto, ele se utilizou de uma metodologia diferente para pesquisar a variável "raça", a qual provavelmente resultou em números subestimados para a população parda, e, na mesma medida, em números superestimados das populações branca e preta.

Ao contrário dos censos anteriores e posteriores, os entrevistadores foram orientados a intervir ativamente na classificação "racial" dos entrevistados, procurando classificá-los como brancos, pretos, ou amarelos; somente quando os entrevistados não produziam uma resposta que pudesse ser encaixada nessas categorias é que os entrevistadores deviam marcar a quadrícula correspondente com um traço ("-"), o qual foi, durante a tabulação, interpretado como significando "pardo". Essa diferença metodológica, e não a melhor qualidade desse censo em relação aos anteriores, parece ter sido responsável pelo resultado atípico das três categorias, particularmente da "parda" e da "preta", as quais voltam, a partir do censo de 1950, a apresentar resultados mais compatíveis com o da série histórica completa.

Considerados estes problemas, como ficam os resultados do Censo de 1872?

Dada a forma peculiar como a população escrava foi recenseada, é no mínimo plausível que as categorias "parda" e "preta" apareçam infladas no censo de 1872. Também problemática é a relação entre as categorias "parda" e "preta". Verifica-se que, dos pardos, 87,44% eram livres, mas, dos pretos, 52,87% eram escravos. Duas explicações são possíveis para essa diferença nas proporções: primeiro, é provável que os senhores de escravo tendessem a libertar mulatos mais do que pretos; segundo, é também possível que os senhores de escravos preferissem descrever os seus cativos como "pretos" do que como "pardos", enquanto que, comparativamente, é possível que a população não-branca livre preferisse se auto-classificar como "parda" do que como "preta". Na verdade, ambas as explicações são tão plausíveis que o mais provável é que ambas sejam verdadeiras; o problema é que a proporção em que cada uma delas explica a diferença mudaria a nossa interpretação a respeito da confiabilidade dos números do censo de 1872. Se toda a diferença entre pardos e pretos no que toca às proporções entre livres e escravos pudesse ser atribuída à maior propensão dos escravocratas em libertarem mulatos, então os números do censo seriam acurados; se, ao contrário, toda a diferença fosse atribuída à tendência dos escravocratas a classificarem os seus escravos de "pretos", então os números do censo estariam errados, inflando os números de pretos às custas dos de pardos, em cerca de 670 mil pessoas. Isso significaria corrigir os números do censo para 1.285.100 pretos (12,93% da população) e 4.470.000 pardos (45,03%). Ora, não é difícil ver que esse número não é possível: ele implicaria um crescimento mais que proporcional da população preta entre os dois censos, que não parece corresponder aos fatos que conhecemos (baixa fecundidade das mulheres pretas, forte imigração branca durante o período). Por outro lado, a suposição de que os números do censo de 1872 são acurados também é improvável, na medida em que supõe um crescimento demasiado pequeno (7,32% em dezoito anos) da população preta, quase uma estagnação, a qual contrastaria com um crescimento de 37,23% da população parda - mesmo sem considerar o problema da população cabocla.

Quanto à população cabocla, naturalmente, a questão que se coloca é muito simples: trata-se de uma população cujos descendentes se consideram pardos ou brancos? E o seu enorme aumento entre 1872 e 1890 reflete uma reclassificação de quem? Cativos que em 1872 foram declarados "pardos" pelos seus proprietários, e em 1890 se declararam caboclos? Ou pessoas livres, que, por algum motivo se declararam "brancas" em 1872 e mudaram para "caboclas" em 1890? Para responder essas questões é necessário analisar o crescimento das populações das diversas "raças" entre 1872 e 1890; e, para tanto, é necessário avaliar o impacto da imigração, a qual durante o período é responsável por pelo menos parte do crescimento mais do que proporcional da população branca.

Um estudo detalhado da evolução da população imigrante no Brasil pode ser encontrado no trabalho de Judicael Clevelário, A participação da imigração na formação da população brasileira. Clevelário nos dá uma estimativa da população de origem imigrante, ano a ano, de acordo com quatro diferentes hipóteses, relativas à taxa de permanência dos imigrantes (variando entre 50% na hipótese 1 até 100% na hipótese 4). Ele considera como mais realista a hipótese 3, e é com ela que iremos trabalhar aqui. Para 1872 e 1890, Clevelário estima a população de origem imigrante, de acordo com sua hipótese 3, respectivamente em 238.799 e 873.222 pessoas - um acréscimo de 634.423 pessoas, correspondendo a 16,75% da população branca de 1872.

Se isso é verdade, então o crescimento da população branca não imigrante pode ser calculado em 52,99% (de 3.548.490 para 5.428.976 pessoas). Esta taxa de crescimento implica um crescimento anual de 2,39%, o que nos parece razoável para a época e a posição social desfrutada por essa população (lembremos que o crescimento anual da população como um todo, para o período, é de 2,06%). Por outro lado, a população branca de origem imigrante teria crescido de 238.799 para 873.222 pessoas durante o mesmo período. Os dados disponíveis para a entrada de imigrantes entre 1872 e 1890 nos indicam o ingresso de 630.129 pessoas; como Clevelário estima a taxa de permanência para o período em 80%, a estimativa é de que 126.026 imigrantes retornaram ou re-emigraram, deixando um saldo migratório de 504.103 pessoas. Assim, o crescimento vegetativo da população de origem imigrante teria sido de 238.799 para 369.118 pessoas, ou 54,57% - ligeiramente maior que o da população branca "nativa", como seria de se esperar.

Para este período, em que melhores condições de vida ainda se refletiam, como nas sociedades tradicionais, em maiores taxas de natalidade entre a população economicamente mais favorecida, o crescimento da população branca teria de ser superior ao do restante da população, mesmo sem considerar a imigração. Este raciocínio, além disso, vai nos permitir estabelecer um limite máximo ao crescimento da população cabocla entre 1872 e 1890: tendo essa população um padrão de vida inferior ao dos brancos, é de se acreditar que o seu crescimento tenha sido igual ou menor a 52,99%. Portanto, podemos ter uma razoável dose de certeza de que a população "cabocla" pelos critérios de 1872 não aumentou para mais de 592.000 pessoas em 1890; as outras 703.795 pessoas que se classificaram como caboclas em 1890 só podem ser o resultado de um amplo movimento de reclassificação identitária. Quem são eram pessoas que se reclassificaram como caboclas entre 1872 e 1890? A alta taxa de crescimento demográfico dos brancos, associada ao pequeno crescimento dos pardos, nos mostra que, no fundamental, essas pessoas, ou seus ancestrais, figuraram como "pardos" no primeiro censo. A questão passa a ser: quantas pessoas?

Vamos a partir desta discussão construir dois modelos alternativos da evolução da população brasileira entre 1872 e 2000. O primeiro partirá da suposição de que todas as categorias de "cor ou raça" tiveram um crescimento equivalente durante todo o período - e que, portanto, todas as incongruências entre os diversos censos se devem a movimentos de reclassificação por parte das diversas populações. O segundo, ao contrário, tentará tomar em conta as diferentes taxas de crescimento das diversas "cores e raças", buscando reduzir ao minimo razoável os movimentos de reclassificação. Em ambos, vamos considerar os dados de todos os censos que coletaram dados sobre a variável "cor ou raça", exceto o de 1991.

Para dar conta das variações na composição "racial" da população brasileira entre 1872 e 1890, considerando a prolificidade sempre a mesma para todas as categorias de "cor ou raça" em cada intervalo20, seria necessário admitir a existência de nada menos de 24 grupos de identidade "racial", cada um dos quais se reclassificando de forma diversa a cada censo.

O primeiro destes grupos a ser considerado é a população de origem imigrante (poi). Em 1872, esse grupo era, no fundamental, parte da população branca; somente a partir do censo de 1940 é que será necessário levar em consideração a imigração asiática. Vamos utilizar aqui a hipótese de Clevelário21 até 1980; para 2000, o número de Clevelário para 1980, multiplicado pelo índice de crescimento da população em seu conjunto entre 1980 e 2000. Eis a evolução da poi de 1872 a 2000:

população 1872 1890 1940 1950 1960 1980 2000
poi (branca) 238.799 873.222 7.169.258 9.134.161 12.642.983 21.522.345 30.432.466
crescimento anual 7,47% 4,30% 2,45% 3,30% 2,70% 1,75%
poi (amarela) 0 0 167.222 213.526 312.715 566.484 807.534
crescimento anual 2,47% 3,89% 3,02% 1,79%

Subtraindo a poi do conjunto da população, teríamos a seguinte evolução para a população sem origem imigrante:

população 1872 1890 1940 1950 1960 1980 2000
população sem origem imigrante 9.691.679 13.460.693 33.815.869 42.488.455 57.189.069 96.404.325 137.426.181
crescimento anual 1,84% 1,86% 2,31% 3,02% 2,65% 1,79%

Tomaremos, então, os coeficientes de crescimento anual dessa população sem origem imigrante como base para modelar a evolução do conjunto da população, dividida em grupos de identidade "racial".

modelo%20de%20evolu%C3%A7%C3%A3o%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20brasileira%2C%20por%20ra%C3%A7a%2C%201872-2000.psd

Vemos que existe uma população (a soma da poi branca com o grupo 1) de mais de 80 milhões de pessoas (em números de 2000) que corresponde, dentro do modelo que estamos construindo, aos brancos de 1872, ao lado de uma população (a soma dos grupos 2 e 3 na tabela) de cerca de 10,5 milhões de pessoas que se classificaram como brancas em 2000, mas corresponderiam, neste modelo, a cerca de 740 mil pessoas que se classificaram como caboclas ou pardas em 1872. Uma terceira população importante é constituído por contingentes (os grupos 4 a 9) que se consideraram pardos tanto em 1872 como em 2000, mas que se consideraram brancas ou caboclas durante diferentes períodos, e que corresponderiam a cerca de 16,5 milhões de pessoas em 2000 e 1,15 milhões em 1872. Depois disso, teríamos uma população (o grupo 10), crescendo de 2,2 milhões de pessoas em 1872 para 31,3 milhões em 2000, que se teria mantido consistentemente parda ao longo do período. Segue-se uma população (os grupos 11 a 15) considerada preta em 1872, mas reclassificada como parda em 2000 - cerca de 1,2 milhões de pessoas em 1872 e pouco mais de 17 milhões em 2000. O grupo 16 da tabela, com cerca de 36 mil pessoas em 1872 e 510 mil em 2000, embora identificado como preto em ambos os extremos do período tempo em análise, teria oscilado para a categoria "pardo" no período intermediário, e, finalmente, o grupo 17, de pouco mais de 700.000 pessoas em 1872 e pouco mais de 10 milhões em 2000, manteve-se consistentemente preto durante todo o período. Restariam então apenas a poi amarela (que, para todos os efeitos práticos inexistia em 1872, e constituía um grupo de pouco mais de 800.000 pessoas em 2000), o grupo 18, que teria mantido uma identidade cabocla/indígena, reclassificando-se como pardo, porém, quando nenhuma dessas opções estava disponível no censo (51 mil pessoas em 1872, 734 mil em 2000), e uma população curiosa, para dizer o mínimo (grupos 19 a 22), a qual, tendo se identificado como parda tanto em 1872 como em 2000, teria se identificado como amarela durante alguns censos intermediários22 (quase 29 mil pessoas em 1872 e pouco mais de 400.000 em 2000). Além disso, a população amarela de origem imigrante, em se aplicando o método de Clevelário, não é apenas muito pequena nos censos de 1940 a 1980, mas também grande demais (807.534 pessoas) em 2000, quando o censo contou apenas 761.583 brasileiros de "raça" amarela (o que se reflete, na tabela ao lado, também no quantitativo de pardos para 2000, que fica diminuído na mesma quantidade, de 65.318.092 para 65.272.140 pessoas no nosso modelo). Entretanto, vamos aqui considerar os problemas referentes aos amarelos como menores: eles envolvem menos de 500.000 pessoas, numa população total de 170 milhões (0,27%), portanto são numericamente pouco significativos. Por outro lado, nossa preocupação é investigar em que medida o censo de 1872 representa um ponto de chegada razoável para a evolução da população do Brasil durante o período colonial e imperial.

A tabela abaixo resume os dados, mostrando em que medida a população brasileira parece ter se mantido coerente no decorrer do período:

1872 1890 1940 1950 1960 1980 2000
consistentemente brancos 3.787.289 5.801.690 19.550.526 24.690.790 33.582.062 56.819.613 80.749.385
brancos, às vezes pardos 743.921 1.033.226 2.595.663 3.261.360 4.389.760 7.399.874 10.548.660
pardos, às vezes brancos 1.153.740 1.602.420 4.025.589 5.058.012 6.808.038 11.476.394 16.359.816
consistentemente pardos 2.210.471 3.070.105 7.712.698 9.690.736 13.043.641 21.987.828 31.344.062
pardos, às vezes negros 1.210.131 1.680.741 4.222.347 5.305.231 7.140.792 12.037.322 17.159.430
negros, às vezes pardos 35.885 49.840 125.209 157.320 211.752 356.953 508.843
consistentemente negros 708.436 983.941 2.471.850 3.105.793 4.180.369 7.046.900 10.045.489
caboclos/pardos/índios 51.773 71.907 180.645 226.974 305.504 514.992 734.131
consistentemente amarelos 0 0 167.222 213.526 312.715 566.484 807.534
pardos, às vezes amarelos 28.832 40.045 100.600 126.400 170.133 286.795 408.832

Não é difícil constatar que o grau de coerência é bastante grande - 72,89% da população brasileira em 2000 (ou 67,53% em 1872) parece se incluir em um dos quatro grupos consistentes acima, sem contar a população indígena, que, naturalmente, não poderia se manter consistente na auto-declaração de raça por que a categoria não era uma opção na maioria dos recenseamentos. Além disso, lembremos que este modelo se baseia numa hipótese extrema: a de que não houve diferenças na prolificidade entre as populações de diferente identidade "racial", supondo, assim, que todas as alterações nas proporções entre estas se devem a oscilações identitárias. Ou seja, o modelo maximiza a inconsistência nas auto-declarações de "raça", e, ainda assim, nos mostra um quadro de consistência razoavelmente elevada. Nosso segundo exercício, portanto, será o de buscar o limite mínimo da inconsistência, ou seja, que medida da oscilação nas proporções entre as diversas categorias "raciais" não pode ser explicada a não ser como resultado de efetivos movimentos de reclassificação.

Este terá de ser, naturalmente, um exercício muito mais arbitrário do que o anterior. Teoricamente poderíamos supor que nunca houve nenhuma reclassificação, exceto a dos caboclos, quando a categoria foi abolida, e a dos indígenas, quando foi criada. Mas sabemos que os índices de fertilidade da população branca eram mais altos que os das populações não-brancas no início do período, e sabemos que tal estado de coisas perdurou até 1940, pelos dados do censo daquele ano.

Um pouco de genética

Miscigenação e "branqueamento"

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