A questão racial no Brasil

Este texto se inscreve numa discussão há muito tempo devida: a do posicionamento da esquerda diante da questão racial no Brasil. Discussão que se faz mais premente na medida em que a esquerda está no governo, e as políticas que têm sido recomendadas internacionalmente para a solução da questão racial (as famosas "ações afirmativas") são polêmicas, elaboradas por uma direita liberal internacional muito bem organizada, mas são as únicas que têm sido propostas: a esquerda brasileira, pelo menos, tem oscilado entre uma aceitação acrítica dessas políticas e uma defesa, também acrítica, da igualdade formal entre todos, independentemente de raça ou cor.

Ora, a realidade nos mostra que a igualdade formal, no aspecto da questão racial, no Brasil, nada mais é que uma cortina de fumaça a disfarçar - e mal - a profunda desigualdade material que caracteriza a sociedade brasileira. Por outro lado, a implementação de "ações afirmativas" implica a re-racialização do discurso público: ainda que as intenções sejam agora opostas às que ditaram as políticas segregacionistas do passado, até que ponto podemos garantir que a re-racialização não se voltará, no futuro, contra as populações que teoricamente visa apoiar? Lembremos dois ditados populares: o caminho do inferno é pavimentado de boas intenções; e a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.

Essas dicotomias sempre encobrem o eixo em torno do qual se articulam. Entre duas posições aparentemente opostas, que parecem recobrir o espectro inteiro das possibilidades, costuma haver um nexo invisível e "indiscutível", uma pressuposição cega, acrítica, não expressada, que, uma vez explicitada, as mostra como contrapartes de uma mesma coisa, os famosos "lados da mesma moeda". Este texto visa explicitar a forma como a igualdade formal e as "ações afirmativas" são os lados, aparentemente opostos, de uma mesma moeda, moeda que se traduz, em última análise, pela manutenção da desigualdade racial e daquilo que sustenta, produz, e manipula, em seu próprio proveito, a desigualdade racial.

Para isto, teremos que fazer um apanhado histórico da questão racial no Brasil, tal como se desenvolveu tanto nas ruas, na vida cotidiana, quanto na academia, na reflexão sobre a vida e seus dilemas.

De escravo a preto: a racialização da subalternidade social

Quem olhar para retratos de figuras históricas do Império e da República pode se deparar com um fenômeno paradoxal. Havia mais homens públicos negros, ou mulatos, em posições de destaque social no Império, antes da abolição da escravidão, do que na República. (inserir nomes, figuras, relatos)

A que se deve esse paradoxo? Fundamentalmente, à própria instituição da escravidão. Como a distinção social fundamental numa sociedade escravocrata é entre escravos e livres, e o lugar social do escravo é bem conhecido e delimitado, assim como os mecanismos de ascenção social (fundamentalmente a alforria), a discriminação racial é, de certa forma, redundante, e até mesmo problemática. Pois entre os extremos do branco por definição senhor e do negro por definição escravo se insere uma larga faixa de mulatos mais e menos claros ou escuros, cuja posição social não se define pela cor, mas pela liberdade ou sua ausência. Ainda mais no Brasil, em que a miscigenação sempre foi importante, nem a vida em família nem o calvinismo típicos dos Estados Unidos servindo de freio às aspirações poligâmicas dos senhores. Assim, o mulato escuro - ou mesmo o negro puro - mas forro ou livre é uma possibilidade concreta, assim como o mulato claro escravo. Assim, a defesa da propriedade escravocrata precisa ser flexível na sua articulação com o preconceito racial: não se pode partir do pressuposto de que a cor mais clara implica a liberdade.

Sem dúvida, isso não significa a ausência de preconceito racial numa sociedade escravista; ao contrário, o primeiro é uma precondição da segunda. E são evidentes as manifestações de racismo na relação senhor-escravo, incluindo a preferência dada aos escravos de cor mais clara no que toca à manumissão, e a tendência policialesca à dúvida em relação ao estatuto do negro livre (negro livre ou escravo fugido? na dúvida, prenda-se) ainda hoje perpetuada no comportamento racista da polícia brasileira.

De qualquer forma, a liberdade formal conquistada em 1888 (e é importante lembrar que se tratou de uma conquista de um amplo movimento de massas, não uma dádiva de uma princesa bondosa) pode perfeitamente ser complementar a um acirramento do preconceito racial, e é até natural que o seja. Não havendo mais escravidão, as fronteiras nítidas entre os de cima e de baixo precisam ser reconstruídas, e a raça é o elemento óbvio para fazê-lo. Até 1888, a cor negra podia ser um elemento a indicar a possibilidade de que um indivíduo fosse escravo; depois disso, ela efetivamente precisa ser tomada como o elemento central da posição social do indivíduo.

Essa modificação fundamental se encontra articulada, em outro plano, com o desenvolvimento de uma ideologia racista que se pretendia "científica", e que se utiliza dos avanços no conhecimento da biologia, em especial da genética e da biologia evolutiva, no sentido de construir um arcabouço ideológico capaz de naturalizar, e por essa via justificar, a desigualdade social. Essa articulação fica muito clara na existência, no Brasil, de um anti-escravismo racista, que, longe de se preocupar com a condição do negro ou do escravo, deseja na verdade a eliminação do problema. Abolindo-se a escravidão, os negros não mais serão necessários.

Outro fator fundamental nessa transformação é de natureza econômica. Independentemente da evolução da escravidão, o centro da economia brasileira durante o século XX se deslocou firmemente em direção a São Paulo. O último dos "ciclos" do escravismo colonial brasileiro, aquele que finalmente propiciaria a acumulação primitiva necessária ao início do desenvolvimento capitalista do país, o ciclo do café, revitalizou a economia do Sudeste - do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, mas sobretudo de São Paulo - antes letárgica desde o esgotamento do ciclo da mineração.

A dinâmica demográfica de uma sociedade escravocrata é totalmente diferente da de uma economia capitalista. Nesta última, como estamos acostumados, a classe trabalhadora apresenta uma superpopulação estrutural, a qual somente em períodos de auge muito intenso é absorvida pelo mercado de trabalho; mas numa economia baseada na escravidão, o contrário acontece: há uma carência estrutural de mão-de-obra. Quando essa tendência geral se combina com o crescimento econômico, a carência de mão-de-obra atinge níveis particularmente agudos. "Normalmente", isso intensifica a captura e o tráfico de escravos; esse o processo que caracterizou todos os "ciclos" econômicos do Brasil escravocrata - do açúcar, do algodão, do ouro, do diamante.

O modo-de-produção escravista, portanto, pressupõe a existência de um espaço político-geográfico "externo", livre: o lugar onde se capturam escravos. No caso do Brasil colonial e imperial, esse espaço foi fundamentalmente a África, com uma participação muito menor, e cronologicamente mais antiga, do sertão brasileiro. É claro que esse "exterior" tem sua própria dinâmica demográfica interna. A sociedade escravocrata impacta essa dinâmica num sentido negativo, drenando populações que podem ser ou não "excedentes" do ponto-de-vista das sociedades não-escravistas assim pilhadas.

É claro que a escravidão, portanto, transforma o seu "entorno" não-escravista, reduzindo, às vezes drasticamente, a sua expansão populacional, tanto diretamente, através da captura de indivíduos (principalmente homens em idade reprodutiva), quanto indiretamente, através do desestímulo à reprodução ou da introdução de relações escravistas nas sociedades que depreda. Enfim, a escravidão produz a escassez de escravos, o que vem a se traduzir em escassez de mão-de-obra nas atividades produtivas.

Por outro lado, a expansão da lavoura cafeeira movida pelo braço escravo coincidiu, historicamente, com a expansão e consolidação do modo-de-produção capitalista na Europa. Do ponto-de-vista capitalista, a escravidão é um contra-senso econômico, entravando o desenvolvimento dos mercados consumidores. Daí a pressão, sobretudo inglesa, contra o tráfico de escravos. Ela leva o Brasil a proibir, pro-forma o tráfico negreiro em 1831; sua continuação leva depois à supressão efetiva do tráfico em 1850.

Portanto, em meados do século XIX, a escravidão brasileira estava em xeque-mate, privada de seu "entorno" fornecedor de mão-de-obra, num momento em que a expansão cafeeira aguçava brutalmente a carência de "braços". A classe dos senhores-de-escravos, assim, necessitava, e com urgência, resolver esse problema. A solução óbvia era, naturalmente, a abolição do regime escravocrata, mas esta confrontava diretamente a lógica dos senhores-de-escravos, a começar pelo problema, muito concreto, do ressarcimento do dinheiro imobilizado na compra de escravos. A classe dos senhores-de-escravos, assim, avançava a consigna da "abolição mediante indenização", o que na prática a inviabilizava.

Enquanto numa sociedade capitalista a mão-de-obra excedente nos períodos de baixa conjuntural é dispensada das relações de emprego, não constituindo responsabilidade do capitalista, numa sociedade escravocrata a escravaria excedente durante as conjunturas de descenso econômico constitui um problema sério, na medida em que a dissolução da relação senhor-escravo tende a ser irreversível. A melhor solução do ponto-de-vista escravocrata consiste na venda da escravaria excedente para áreas mais dinâmicas, se as houver. Ora, esta era a realidade do Nordeste brasileiro durante a crise final do escravismo: uma economia em franca recessão, que não fora capaz, durante o seu período de auge, de acumular capitais em quantidade suficiente e na forma necessária para fazer a transição para o capitalismo.

Durante o terceiro quartel do século XIX, por isso, o Nordeste serviu como supridor de mão-de-obra escrava para o Sudeste em expansão. Com isto, os escravocratas nordestinos puderam obter, na prática, a sua reivindicação central: foram ressarcidos do capital empatado na escravaria, às custas de seus colegas do Sudeste. Entre estes, a minoria mais lúcida logo se empenhou na busca de mecanismos legais que inviabilizassem essa prática, que os condenava, enquanto classe, a comprar uma mercadoria sem futuro, na medida em que a abolição se fazia cada vez mais inevitável, e enquanto indivíduos, a inviabilizar suas explorações econômicas por falta de mão-de-obra se resistissem à loucura coletiva1.

De qualquer forma, uma fonte alternativa de mão-de-obra se fazia urgentemente necessária. Não era possível libertar os escravos para transformá-los em mão-de-obra assalariada de forma gradual, sem precipitar a abolição; era necessário portanto recorrer a uma mão-de-obra manifestamente distinta da escravaria, que pudesse ser assalariada, ou contratada em algum tipo de regime de transição - parceria, colonato, etc. - sem desencadear a abolição imediata de toda a escravaria.

Essa mão-de-obra estava disponível devido às peculiaridades da evolução demográfica da Europa. Esta, entre transformações tecnológicas (a vacina anti-variólica, a mudança nas práticas de saneamento, a expansão da produção agrícola devida à melhoria das técnicas) e sociais (a constituição de uma classe trabalhadora "livre" de quaisquer vínculos com o solo, o fracionamento crescente das parcelas camponesas), constituíra uma imensa massa de trabalhadores despossuídos, excedentes do ponto-de-vista de uma economia agora capitalista. Desde o início do século, essa massa se movia, em quantidades enormes e crescentes, em direção ao "novo mundo": América do Norte, Austrália, as partes não-escravocratas da América Latina.

Desde meados do século, por isso, a classe dos senhores-de-escravos de São Paulo buscava os mecanismos para atrair para suas plantations imigrantes europeus. Sem conseguir, contudo. Enquanto uma vertente imigratória (pequena, em comparação com a imigração para os Estados Unidos, Argentina, Uruguai e Canadá, mas muito maior do que a entrada de imigrantes para a cafeicultura) se dirigia para o Sul do país, dentro de outra lógica completamente diferente, os projetos iniciais de imigração para a cafeicultura estagnavam: as condições oferecidas eram, ainda que melhores que a escravidão a que estavam condenados os negros brasileiros, muito piores que as oferecidas pelos outros países, e mesmo pelas províncias do Sul, aonde os imigrantes podiam esperar tornar-se proprietários de uma pequena exploração rural.

A solução final da crise foi a imigração subsidiada. A partir do momento em que a viagem para o Brasil passou a ser paga pelo Estado ou pelas associações dos futuros patrões, em vez de constituir, como originalmente, uma dívida impagável que tendia a degenerar na reinstauração de uma relação servil, São Paulo passou a ser competitiva na atração de imigrantes. A partir de 1886 São Paulo se torna o principal destino dos imigrantes entrados no Brasil, condição que não mais perderá até o esgotamento da emigração européia. Sem que a imigração para o Sul tivesse diminuído, São Paulo ultrapassa, em muito, as três províncias/estados meridionais, por que a imigração total para o Brasil dá um enorme salto quantitativo.

Esses imigrantes foram, até o final da primeira década do século XX, quando se inicia a imigração japonesa, todos brancos. Essa coincidência histórica permitiu aos senhores escravos paulistas (em Minas Gerais a evolução seria diferente) fazer a transição para relações de trabalho assalariadas (ou, pelo menos, não escravistas) sem empregar os ex-escravos, por que lhes permitiu fazer da raça um argumento. Tendo usado à vontade da mão-de-obra escrava, negra, de origem africana, durante toda a primeira fase da expansão cafeeira, resolviam agora que o trabalhador de origem européia era "melhor", mais qualificado ou menos preguiçoso do que o negro escravo ou ex-escravo. Logo descobririam que não era bem assim, e que seus novos empregados de origem italiana ou espanhola, tão pouco como os negros escravizados, não eram máquinas de produzir café - além de terem tradições de organização operária, socialista ou anarquista, que nossos escravocratas talvez achassem melhor ter deixado do outro lado do oceano. Mas aí milhões de imigrantes já tinham entrado no Brasil, a escravidão tinha acabado, e os ex-escravos tinham sido marginalizados.

Branco+preto = preto ou branco+preto = branco? Pureza racial e miscigenação

Os "raciocínios" racistas padecem, de forma geral, de uma contradição insanável. Postula-se a existência de uma "raça superior"; em seguida, porém, raciocina-se de uma forma tal que a suposta "raça superior" parece, ao contrário, imensamente frágil. Supõe-se que, ao misturar-se com as "raças" supostamente inferiores, a "raça superior" se degrada. Mais diretamente, através da miscigenação; menos diretamente, através de todo tipo de contato com os "inferiores" (assim os nazistas chegariam a acreditar que uma mulher "ariana" que tivesse tido contato carnal com um "judeu" poderia transmitir "características judaicas" a filhos que viesse ter, anos depois, com outro exemplar da "raça ariana").

É claro que, psicologicamente, essa completa inversão de valores, em que o "superior" é frágil, quebradiço, e indefeso, e o supostamente "inferior", ao contrário, é dominante, agressivo, invasivo, revela a ansiedade racial-sexual dos racistas, movidos, na realidade, por um complexo de inferioridade de forte conotação sexual em relação ao "judeu", ao negro, ao cigano, etc, que são, ao fim e ao cabo, considerados reprodutivamente mais capazes do que a dita "raça superior".

De outro ponto-de-vista, pode-se atribuir a essa desengonçada articulação entre "superioridade racial" e inferioridade reprodutiva uma origem um pouco mais nobre, entroncada no raciocínio aristotélico de que toda mudança é necessariamente degenerativa. É claro que tal ordem de idéias está em contradição direta com o evolucionismo darwiniano, e que a tentativa de justapor uma a outra - que é característica do racismo pseudo-biológico - só pode ter como resultado noções absurdas, culminando numa "raça superior" que jamais teria sobrevivido a milênios de competição com "raças inferiores" reprodutivamente muito mais aptas.

Um caminho de fuga aberto à ideologia racista é uma suposta des-hierarquização das raças, sem abrir mão da condenação da miscigenação. É a idéia de que as "raças" em si mesmas não são superiores ou inferiores, mas que a miscigenação, por algum motivo nunca deixado muito claro, conduz necessariamente à preservação dos piores - e nunca dos melhores - aspectos de cada raça. Efetivamente, contudo, esse é apenas um disfarce, e nem sequer de boa qualidade: é sempre a pureza da "sua" raça que o racista tenta preservar. Mas este disfarce tão pobre está na raiz de uma ideologia que voltaremos a encontrar no futuro: a do apartheid. "Iguais, mas separados" é a consigna destes racistas, como se a separação não fosse, exatamente, o mecanismo central para a manutenção da desigualdade.

Entretanto, todos esses raciocínios se adaptam muito mal à realidade de um país como o Brasil, constituído, em grande parte, da miscigenação de portugueses, índios e africanos, de tal forma que mesmo a elite dita branca certamente possui antepassados "na senzala" ou "apanhados a laço". No fim do século XIX e início do XX, a elite brasileira se encontrava aprisionada entre as fantasias de superioridade e de pureza racial, então dominantes na Europa - vale dizer, na fonte de toda cultura e civilização - e as realidades de um país majoritariamente mulato e caboclo. Se as fantasias raciais lhe haviam sido úteis para realizar a transição da escravidão ao salariato, não lhe serviam na medida em que tivesse ambições internacionais.

Diante de uma Europa orgulhosamente branca, que teorizava a inferioridade das demais raças e sobretudo dos indivíduos mestiços, a elite brasileira só podia afirmar a capacidade civilizatória da sociedade que dirigia contornando ao menos algumas das premissas do racismo "científico" europeu. Pois o Brasil, se não estava condenado, pela maldição da miscigenação, conforme lançada pelo Conde de Gobineau, a permanecer na retaguarda da civilização ou a regredir à barbárie, ou teria de se afirmar como civilização tropical e mestiça, ou teria de encontrar um caminho rumo à "pureza racial" ariana. Para a elite brasileira, esse caminho se materializou na imigração, que havia, de, por meio exatamente da miscigenação condenada do outro lado do Atlântico, embranquecer o brasileiro. Essa a ideologia do "branqueamento": diretamente derivada das noções de "superioridade racial" importadas da Europa, ela contudo delas se desviava, se não as confontava frontalmente, ao supor que a "melhoria da raça", através da infusão contínua de "sangue" europeu, resultaria não numa mistura degenerada, mas numa população essencialmente branca.

De certa forma, assim, a ideologia brasileira do branqueamento levava mais a sério a propalada superioridade da raça branca. Em parte, pelo menos, devido a uma ilusão ditada pelo desenvolvimento histórico do Brasil, particularmente pela escravidão. Durante a vigência da escravidão - e, na verdade, durante muito tempo depois disso - a fertilidade das mulheres negras no Brasil era consideravelmente inferior à das brancas. Não é difícil entender por que; mas essa vicissitude histórica era confundida com uma característica "racial". Daí, em parte, a confiança da elite brasileira de que a herança genética européia predominaria, terminando por erradicar a população negra e mestiça do país.

A democracia racial

O racismo "científico" transformou-se em força política nos anos 1920, e colocou-se como candidato a ideologia hegemônica do mundo capitalista na década seguinte, particularmente a partir da tomada do poder pelos nazistas na Alemanha, em 1933. Logo a disputa político-ideológica se transformaria em conflito militar, o qual, por algum tempo, pareceu pender em favor da Alemanha nazista.

Mas os anos de maior poderio aparente do racismo "científico" viram também o início do questionamento das suas premissas. Sua própria organização em força política passou a deixar claras as conseqüências práticas da ideologia, e particularmente a incompatibilidade do racismo "científico" com o liberalismo e com a ideologia das Luzes. Consequentemente, as idéias racialistas foram abertamente contestadas, especialmente nos meios progressistas, aí incluídos os cientistas, tanto no campo das ciências sociais quanto na biologia.

No Brasil, a ruptura está essencialmente associada ao trabalho de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, de 1933. Embora outros autores (notadamente Rocquette Pinto, Artur Ramos e Manuel Bonfim) o tenham precedido na crítica do racismo pretensamente científico, na valorização da miscigenação e na negação de uma suposta superioridade racial do branco sobre o negro ou o índio, Freyre, até pela natureza monumental da sua obra, pela pesquisa aprofundada e pela magistralidade da síntese, destaca-se como o marco divisório, a partir do qual toda discussão fundamentada nos supostos caracteres raciais se torna obsoleta e é deslocada, definitivamente, do centro da pesquisa e da ideologia acadêmicas para uma bem merecida marginalidade.

Com Freyre, a noção de raça perde espaço para a noção de cultura; e, embora a evidente disparidade tecnológica entre a Europa, de um lado, e a América e a África, de outro, durante o período colonial, não seja posta em questão, as diferenças culturais não mais são vistas do ponto de vista exclusivo da justificação do colonialismo. Abundam em Freyre referências a aspectos em que as culturas ameríndias ou africanas são comparadas favoravelmente à cultura europeia da época. Mais importante, contudo, a partir do momento em que a mestiçagem deixa de ser vista apenas pelo aspecto biológico (e Freyre com certeza demole radicalmente as noções vinculadas a uma "degeneração" racial pela miscigenação, mostrando como outros fatores, principalmente os de natureza nutricional e epidemiológica, são responsáveis por muito do que se acreditava até então serem problemas e doenças decorrentes da mestiçagem), passa a ser possível encarar a mistura cultural característica do Brasil como um bônus mais do que um ônus, na ótica da "construção nacional".

A crítica da democracia racial: raça e classe

A crítica da democracia racial: racismo e capitalismo

Da crítica da democracia racial à noção de um apartheid disfarçado

A influência do movimento negro norte-americano: as vitórias do Civil Rights Movement

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A universalidade do branco e a particularidade do negro

A racialização do discurso e o terror acadêmico

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